By Indiana Nomma:
Meu pai sempre teve uma vasta biblioteca pessoal. Sociólogo e escritor, era o típico intelectual enfurnado no escritório de casa. E para dirimir a carência da filha mais nova, a maneira que encontrava para me dar atenção, era me dando selos para colar em suas centenas de cartas para enviar, ou me fazendo arrumar sua caixa de ferramentas, ou organizando o gigante acervo particular de livros.

Anos se passaram até que com a prática fui convidada a catalogar a discoteca de um colecionador de 15.000 CDs e 20.000 LPs em Brasília.

Eu tinha 19 anos quando nessa empreitada que durou de seis meses, me deparei com o álbum póstumo de Tom Jobim chamado “Inédito”. E foi através dele que comecei a ouvir a bossa nova.

Me apaixonei pelos arranjos de “Modinha”, “Derradeira Primavera”, “Falando de Amor”, “Sabiá” e “Canta, canta mais” e a doce voz de Paula Morelenbaum. E nisso ampliei o leque dos ouvidos para a Mpb, conhecendo Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gil, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Roberto Menescal, Peri Ribeiro, Nara Leão, Edu Lobo e outros mais.

Era algo tão diferente das raízes de música clássica, ABBA, Mercedes Sosa, toda a trova cubana e o rock que eu ouvia. Ora se tratava de belas melodias, ora de recados políticos bem claros, ora a citação simples sobre um fim de tarde no mar. Quantas nuances e quanta brasilidade.

Alguns vários anos se passaram, até que morando no Rio de Janeiro, conheci meu parceiro Osmar Milito, pianista paulista radicado em berços cariocas que já havia tocado com muitos desses acima citados.

Trabalhando com ele, pude mergulhar no que era para mim totalmente desconhecido: samba jazz, samba canção e porque não, a própria bossa nova.

Só que para o desespero dos músicos e da cantora “mezzosoprano-tenorina” que sou, os tons das bossas em nada se funcionavam para mim. E pelos arranjos rebuscados, “aranhas” e harpejos, tudo se desencaixava sob minha extensão vocal. Ninguém me acompanhava.

Se não fosse pelo Osmar Milito, eu não teria encontrado uma faceta de intérprete que mescla o lirismo da música clássica, aos dramas da bossa nova e ao rock e ao anarquismo da minha persona em horas vagas.

Ele rearranjou as canções para minhas tonalidades e me trouxe a oportunidade de conhecer o tal suingue bossa-novista.

Um belo dia me apresentou a canção “Nós e o Mar” composta em 1962 por Roberto Menescal. Ela começa leve como uma manhã de primavera, retratando o olhar sobre uma realidade a que poucos cariocas têm acesso.

Todas as imagens que conhecemos nas telas referenciando o cartão-postal mais conhecido do país, estão ali. Cenários de propaganda de uma vida sem problemas nem preocupações, sustentados até hoje somente nas novelas e pela corte insistente, que teima em ignorar a dura realidade atual, maltratada e mal retratada que todos vivem por lá.

Ao invés das diferenças sociais, do passado que não volta mais, das histórias findadas de um celeiro artístico que era referência de cultura para o mundo, a canção retrata a bela natureza, eterna protagonista da Cidade Maravilhosa.

Com ares atemporais o convite é para a contemplação, virtude de observação da leveza, rara hoje em dia e constantemente confundida com superficialidade e desimportância.

E é quando a segunda parte da música se apresenta e as tensões harmônicas surgem diferentes, que me lembro das óperas, quando ocorre a primeira aparição do barítono. Ele, sempre o vilão do elenco, gerando o suspense necessário para o desenrolar da narrativa. “E olhar, para o céu que é tão bonito…”. E o compositor repete a tensão por algumas frases, levanta, suspende e resolve: “Uma onda nasceu, calma desceu, sorrindo, lá vem vindo”. Tudo se acalma.

O Rio de Janeiro é assim. Há quem ame, há quem odeie. Mas há sempre essa dualidade presente nas canções da bossa nova. Talvez seja um modus operandi cultural. A desgraça comendo solta nas comunidades, enquanto o mar traz a imensidão da paz.

Tal qual a demonstração de amor do meu pai ao me pedir para organizar as coisas com a desculpa de estar perto. Ou seria o contrário? O eterno mistério de tostines…

Passeando com meus devaneios, neste fim de semana tive a chance de ter o grande Menescal me assistindo, e gostando do meu trabalho, durante o @santajazz na cidade de Santa Teresa, no Espírito Santo.

Minha admiração por ele sempre foi verbalizada por fazer um movimento que poucos na música fazem: trazer à tona novos talentos.

Nomes como o dele, do meu parceiro Osmar Milito, a grande Aurea Martins, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Mercedes Sosa, GOG, Ivone Lara, Beth Carvalho – citando infelizmente poucos para exemplificar – quebraram as barreiras que sempre critiquei nos outros artistas, famosos “deuses do Olimpo da MPB”, os quais se abstêm em interagir com os novos talentos.

Ao meu ver, os intocáveis contribuem para o aumento de um distanciamento gigantesco entre gerações onde o vazio musical se torna cada vez mais comum. Tem pelo menos três gerações de músicos perdidinha da silva no que se refere a bases de trabalho e encontro com sua própria essência. Nada se cria, tudo se transforma? Há controvérsias.

Sim! Esses poucos supracitados e ainda outros poucos que existem na nossa América Latina, sempre trouxeram novas vozes ao conhecimento de todos. Detalhe: me refiro aos que fizeram isso genuinamente e não por imposição das gravadoras para “apadrinhar” artistas novos, praxe da indústria realizado em novos lançamentos.

No começo de sua carreira, Djavan foi impulsionado pelo Osmar Milito, que também lançou tantas outras cantoras e mais recentemente impulsionou a minha. Gratidão eterna!

Aurea Martins, acolheu também ao Djavan, Alcione e Emílio Santiago e tantos da nova geração no começo e segue até hoje.

Milton Nascimento com a bela Marina Machado e incontáveis parceiros.

Já Mercedes Sosa, enquanto viva, foi do rap ao regional com Calle 13, Milton Nascimento, Victor Ramil, brasileiros, estrangeiros, tantos e tantos.

E voltando ao Menescal, com a linda Cris Delanno e a debutante Analu Sampaio e mais outras variadas! Um movimento vital de renovação.

Isso vem de dentro. Uma força que move a buscar novos talentos, novas vozes, novos timbres, novos instrumentos, cordas, sons.

É uma vontade por tentar encontrar uma identificação, um match musical, ânsia por ouvir o diferente, ter empatia, musicalidade, provocar-se na curiosidade.

É sobre gente que tem sede em ouvir o que não conhece, a banda que não conhece, o artista que nunca viu, que adiciona playlist desconhecida, lê o crítico musical e vai lá fazer a prova dos nove.

Isso é o que movimenta esses artistas e o público que interage com a nova geração. Isso é o que movimenta o público que sai de casa pra ver música independente.

São pessoas que gostam de conhecer o novo. Muitos até para se atualizar, respirar novos ares e sair da zona de conforto.

Ah! Como eu admiro essas pessoas. Como admiro!

E meu cérebro chega ao êxtase se perguntando:
Será possível que essa busca por interação pode ser gerada em outros estilos? Até quando veremos esses distanciamentos entre egos, classes sociais e gerações acontecendo? Até quando a indústria seguirá ditando o que temos que escutar? Até quando seremos massa de manobra dos mecanismos culturais?

É sobre isso, senhoras e senhores. É sobre devaneios, bossas e novas.

Por Indiana Nomma
6/6/2023, São Paulo – SP
Fotos by: @marcelocastellobranco

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